
A ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Vera Lúcia Santana Araújo, talvez não imaginasse que seria vítima de racismo em um ambiente institucional, que recebia um evento de Estado no qual ela seria palestrante. Convidada na semana ada a participar de um seminário sobre a prevenção e o enfrentamento do assédio e da discriminação, organizado pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República — que ocorria no auditório da Advocacia-Geral da União (AGU), no Centro Empresarial da Confederação Nacional do Comércio (CNC) —, Vera Lúcia foi impedida de entrar.
As pessoas que a atenderam na recepção não encontraram o nome da ministra na lista de palestrantes. Embora tenha se identificado verbalmente, a ministra viu serem ignoradas as tentativas de mostrar quem era, mesmo exibindo documento funcional. A CNC, inclusive, não a procurou para dar uma justificativa ou mesmo pedir desculpas, segundo a magistrada.
Ao Correio, porém, a entidade disse repudiar “veementemente qualquer ato de racismo, assim como toda e qualquer forma de discriminação"; que os recepcionistas são funcionários de uma empresa contratada pela istração do condomínio; e, também, que “o controle de entrada estava sendo realizado por meio de uma lista nominal, de responsabilidade dos organizadores do evento” (leia a íntegra da nota mais abaixo). Vera Lúcia, porém, deixa claro que as ações contra o racismo devem ser um compromisso da sociedade e do Estado, e não apenas uma luta do povo negro. A seguir, a entrevista da ministra ao Correio.
A senhora se importaria de lembrar o que aconteceu?
Fui convidada a compor uma mesa de debate nos seminários da Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Esse evento acontecia no auditório da Advocacia-Geral da União, localizado no prédio da Confederação Nacional do Comércio. Ou seja, é um prédio privado que loca espaços, inclusive para órgãos públicos. E, ao chegar no local, o serviço de recepção do prédio era da CNC. Não era um serviço vinculado ao evento, mas sim um serviço especializado contratado pela istração predial da CNC. Eu disse meu nome. A pessoa olhou numa lista e disse que não constava. Apresentei minha identificação funcional do Tribunal Superior Eleitoral, uma carteira vermelha com o brasão do Judiciário Eleitoral brasileiro. As duas pessoas que estavam ali no atendimento não quiseram olhar meu documento. Depois, chamaram um vigilante, que igualmente não quis olhar o documento. Aí ele ligou para alguém e disse que eu não queria dizer meu nome. Falei que era mentira dele, porque eu estava desde o primeiro momento apresentando. Eles não olharam, em nenhum segundo, minha identificação, até que conseguiram falar com alguém, para, finalmente, chegar até o auditório e participar do seminário.
A senhora mencionou que outra mulher presenciou a situação. Havia mais pessoas?
Somente nós. Foi logo que cheguei e a gente chegou praticamente junto. Não tinha outra pessoa para dizer que havia uma terceira testemunha. Os registros daquelas câmeras de segurança, obviamente, têm tudo registrado. Era entre 9h30 e 10h. O tempo todo que isso durou, não houve nenhuma cena. Tudo aparentemente normal e civilizado.
Quais foram as formas de desrespeito com a senhora?
Primeiramente, fui ignorada, no sentido da minha fala e da minha identificação. Estava na condição de ministra substituta. Ia falar em um seminário da Comissão de Ética da Presidência da República. Foi um absoluto desrespeito por ignorar, de certa maneira, a minha presença. Uma das atendentes disse que eu deveria ligar para alguém da organização. Falei que não ia ligar porque não estava tendo nenhum problema com a organização, mas a organização regularmente me convidou. Aceitei e estava no local próprio, no horário determinado. Então, não tinha nada para tratar com a organização do evento. E aí, depois, o vigilante disse que eu não queria nem dizer meu nome. Disse que não era verdade, que era mentira dele, porque desde que cheguei lá, estava me apresentando com a minha identificação institucional — e eles sequer se dignaram a conferir. Foi tão grave que nem precisaram me dizer muita coisa. Apenas me desrespeitaram. Me desconheceram e me ignoraram.
Com quem o vigilante falava quando mentiu a respeito da senhora?
Ele falou ao telefone. Não sei com quem ele falou.
O que precisou ser feito para que a senhora pudesse entrar?
Chamaram a parte de comunicação e, em algum momento, a comunicação chegou para o e da organização do seminário. E aí subiu alguém que foi até lá para conseguir fazer a entrada no prédio.
No momento da sua liberação, a organização ficou sabendo o que aconteceu?
Lógico. Todo mundo lá ficou sabendo. Mas o público, não, porque sentei, falei o que tinha de falar, me mantive sóbria. Segui todo o roteiro que tinha preparado para a minha participação. Então, o público não ficou sabendo de nada.
O evento era produzido pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República, certo?
Exatamente, para essa qualificação da governança pública. Tanto é que o tema do seminário era esse: assédio e discriminação.
Quais as atitudes que a comissão tomou depois do ocorrido?
Foi todo mundo extremamente solidário. A partir do momento em que essa questão foi formalizada, o presidente da Comissão de Ética assinou um ofício, junto com o ministro Jorge Messias [da Advocacia-geral da União], dirigindo esse ofício à ministra-presidente do Tribunal Superior Eleitoral [Cármen Lúcia]. Então, não houve nenhuma espécie de omissão institucional da presidência da Comissão ou da Advocacia-Geral da União.
Foi o que levou ao comentário da ministra Cármen Lúcia, na abertura da sessão plenária de terça-feira?
No Tribunal Superior Eleitoral, a ministra-presidente foi cientificada de tudo. Me chamou, dialogou comigo de maneira extremamente solidária e acolhedora desde o primeiro momento que tomou conhecimento. E, como ontem [terça-feira] foi dia da sessão do tribunal, ela fez o pronunciamento oficial e as questões estão sendo conduzidas por quem de direito.
E uma assessora especial da AGU leu o ofício no plenário…
Ela leu para o tribunal, me deu uma cópia do ofício da AGU e da Comissão de Ética e para a presidência do Tribunal. A doutora Cláudia Trindade, procuradora da Fazenda Nacional, compõe a assessoria do gabinete do ministro Jorge Messias, que trata, dentre outras coisas, exatamente dessas questões de diversidade e inclusão.
O prédio era da CNC. Eles tomaram conhecimento do ocorrido no momento que aconteceu?
Não tenho noção.
Depois do fato, a CNC pediu desculpas à senhora?
Não me consta. Não recebi qualquer comunicação por parte da CNC.
Antes de um posicionamento público, eles deveriam falar diretamente com a senhora…
Por óbvio que a CNC tem uma responsabilidade objetiva pela gestão do prédio. Não sei como é a relação contratual dos terceirizados que ela põe para atuar na gestão do seu prédio. Desconheço. Até porque, eu não tinha que conhecer nada disso. Mas não tive nenhum contato de ninguém da CNC.
O evento era da Comissão de Ética da Presidência da República e a senhora foi indicada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Depois do episódio, ele entrou em contato?
Tenho recebido apoio e solidariedade de diversas entidades, de diversas autoridades do governo federal. Mas não entendo por que atribuir qualquer espécie de responsabilidade ao presidente da República ou à Comissão de Ética da Presidência da República. É a segunda vez que participo de um evento deles. Participei de um seminário com outra temática, num momento em que sequer era ministra do Tribunal. Então, não tem por que essa aproximação do caso junto ao presidente. Acho que não tem que ter esse pronunciamento da Presidência da República. A Comissão de Ética tem autonomia de gestão e tem tido uma resposta institucional ativa, pronta e efetiva.
A senhora disse que não encontraram seu nome na lista. A senhora acredita ter sido apenas descaso dos funcionários ou teve desorganização do evento?
Quando a moça falou para eu ligar para alguém da organização, disse que não tinha nada para tratar com a organização. É, efetivamente, uma disfunção de parte da sociedade brasileira, que é uma sociedade racista. Ou seja: todo mundo ite que existe racismo, mas ninguém se assume racista. O racismo se pronuncia das mais diversas formas. Essa é mais de uma delas. E não há como atribuir à organização do evento uma responsabilização por uma atitude dessa natureza. Mas o que é manifesto no desrespeito — que somente tem como explicação uma postura racista de parte das atendentes e dos vigilantes — foi que embora tivesse, desde o primeiro momento, apresentado a minha identificação do tribunal — já que é uma carteira diferente, vermelha —, nem por curiosidade quiseram ver minha identificação. Então, isso não a pela organização [do evento].
A identificação verbal da senhora não foi suficiente para que a tratassem com decência. Como enxerga isso?
Analiso como sendo uma expressão indisfarçada de violência racista. Não tem outra explicação. Duvido você ver alguma mulher branca, numa posição assemelhada, que tenha experimentado uma situação dessa natureza.
Foi racismo velado?
Velado, não. Foi explícito, tanto que não me permitiu o. A Lei 7.716, inclusive, descreve condutas. Então, foi isso. Não foi disfarçado, não foi velado. Foi rigorosamente explícito. Não houve uma injúria racial. Foi o racismo nos termos da Lei 7.716.
O racismo, como e onde aconteceu com a senhora, está presente, até mesmo, nos ambientes institucionais, de poder…
Sem sombra de dúvida. É um fato bem contundente que ele permeie todos os espaços e ambientes. Significa que o movimento negro brasileiro tem muito mais a lutar, a fazer. E a instituições, naturalmente. O Estado brasileiro continua a dever, e muito, ao povo negro brasileiro. O enfrentamento, o cuidado, a punição efetiva, como tem que ser, de todas as formas istrativas — civil, penal, de todas as ocorrências —, seja quem for a pessoa atingida e alcançada pelo racista.
A senhora disse ter se mantido calma durante o episódio. Essa é a melhor maneira de lidar?
Não quero dar receita para ninguém. Acho que depende muito. Podia, num outro dia, num outro momento, com alguma coisinha a mais, ter uma reação mais ríspida. Então, em outros momentos, talvez não reagisse ou não reaja de outra maneira. Tanto que entrei, fiz minha exposição, fiz o debate que tinha que fazer, sem mencionar nada perante o público.
Que medidas estão sendo tomadas pela senhora?
Fiz a comunicação às autoridades próprias e alguns encaminhamentos já estão sendo impressos. Sei como é o processamento dessas questões. Então, não me incumbe, por hora, qualquer medida outra que não as que já estão sendo implementadas, a partir das autoridades aptas para determinar as operações.
A CNC, a empresa terceirizada e os funcionários envolvidos, individualmente, serão acionados judicialmente?
Todas as partes envolvidas terão que ser processadas e vão responder. Afinal de contas, o Estado Democrático de Direito assim assegura, mas todas as partes envolvidas seguramente serão processadas. Do ponto de vista da ação penal pública, é o próprio Ministério Público quem ajuiza. Vou, naturalmente, acompanhar, mas, enfim, todas as instâncias istrativas e judiciárias serão provocadas.
O que falta para derrotarmos o racismo?
A construção do racismo foi feita pelo Estado brasileiro, em todos os tempos. Desde a escravização, uma abolição que nunca se perfez, até os dias atuais. Então, assim, o Estado brasileiro é o principal devedor das ações relativas a isso. E a sociedade brasileira, e não somente as pessoas negras — e somos a maioria da sociedade brasileira —, acho que todas as forças democráticas têm o dever de se aliar, de somar, de denunciar toda e qualquer ocorrência de racismo. Promover, cada qual na sua esfera de atuação, medidas e ações relativas a isso — um compromisso do povo brasileiro, do Estado brasileiro. Há que ser. Mas, por ora, é, ainda, quase que exclusivo na atuação dos movimentos negros. Tenho recebido de entidades brancas — desde a faculdade de direito da UnB, a Associação de Procuradores Federais —, das mais diversas entidades de segmentos jurídicos e não jurídicos, incontrastáveis demonstrações de solidariedade e apoio. Mas isso ainda precisa se traduzir para o dia a dia das pessoas — digamos assim, do cotidiano, do povo —, para que isso não se repita, não aconteça com ninguém. Independentemente de qualquer cargo ou função.
*Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi
Íntegra da nota da CNC
A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) repudia veementemente qualquer ato de racismo, assim como toda e qualquer forma de discriminação. Reafirmamos nosso compromisso inegociável com os valores de respeito, inclusão e diversidade.
O episódio com a ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Vera Lúcia Santana ocorreu nas dependências de um prédio de propriedade da CNC, que tem entre seus locatários a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), e o ocorrido chegou ao conhecimento da Confederação por meio da imprensa.
A segurança do local é realizada por empresa terceirizada contratada pela istração do condomínio.
O evento em questão foi da Advocacia-Geral da União (AGU), promovido pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Segundo esclarecido pela empresa responsável pelo condomínio, o controle de entrada estava sendo realizado por meio de uma lista nominal, de responsabilidade dos organizadores do evento. Os funcionários da portaria dependiam desta organização para liberar a entrada de pessoas que não constavam na lista de convidados. O contato, para liberação da entrada da ministra e palestrante, foi feito pelos funcionários da portaria junto à PGFN (locatária), que ou a AGU (responsável pelo evento), para então retornar aos funcionários com a liberação. Todo este processo durou cerca de oito minutos, segundo aferido nas gravações de vídeo da portaria.
A CNC reitera seu compromisso com a construção de ambientes seguros, acolhedores e livres de qualquer forma de preconceito ou discriminação. Em razão do ocorrido, a Confederação vai implementar, em contrato, novos procedimentos na cessão de espaços, no qual será obrigatória a presença de representante do evento para tomar decisões ágeis e assertivas no controle de o que impeçam qualquer tipo de constrangimento.
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