
A tensão entre a Venezuela e a Guiana desponta como o maior desafio geopolítico do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) frente à Presidência do Brasil. O chefe do Executivo está sob pressão nacional e internacional para evitar uma escalada bélica na região. O petista tem mostrado reação tímida frente às investidas do aliado, o presidente venezuelano Nicolás Maduro, em comparação com os conflitos envolvendo a Rússia e o Oriente Médio. A saída diplomática é a aposta do governo.
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Na visão de especialistas consultados pelo Correio, porém, o petista tem chance de influenciar e trazer diálogo frente à crise, mas será complexo se manter neutro, sob risco de abrir um vácuo de poder e perder o papel de liderança regional que tem exercido na América do Sul. Em telefonema com Maduro, no sábado, Lula repetiu a declaração emitida pela cúpula do Mercosul que reprimiu suas ações e ressaltou que a América Latina é uma região de paz e sugeriu que o presidente de turno da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), Ralph Gonsalves, trate do tema com as duas parte. E ressaltou ser "importante evitar medidas unilaterais que levem a uma escalada da situação".
"Lula não tem alternativa a não ser atuar para evitar um ataque da Venezuela à Guiana. No caso de uma guerra, não se sabe quem vai se envolver. Tem, de um lado, a Venezuela, que pode ter outros aliados como a Rússia e China. Do outro, os Estados Unidos que podem fazer uma base na Guiana. Tudo isso vai contra o interesse brasileiro e a imagem do presidente pode ficar afetada por não conseguir evitar uma guerra no próprio quintal", analisa o presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Londres e em Washington, Rubens Barbosa, emendando que, para além dos impactos da crise, a situação também pode atrapalhar o protagonismo do país.
Ele defende que Lula possa ter influência, embora limitada, e tente convencer Maduro a acatar a decisão da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que determinou que a Venezuela se abstenha de medidas para incorporar Essequibo, região rica em petróleo. O venezuelano, porém, anunciou não reconhecer a legitimidade da Corte para resolver a disputa. "A única coisa que o Brasil pode fazer é chamar os dois para respeitar as decisões da Corte que está examinando esse caso. O Brasil tinha pretensões nessa região no ado, em 1890, perdeu e respeitamos. Ambos têm que respeitar a decisão do Tribunal."
Ao contrário da guerra no Leste Europeu e da Rússia, Lula tem chance de se posicionar como um canal de diálogo por ter bom trânsito nos dois países, opina a professora de direito internacional da Universidade de São Paulo Maristela Basso. "O papel que Lula não conseguiu desempenhar na guerra entre Rússia e Ucrânia poderá exercer agora na América Latina. O Brasil é o país mais importante da região e Lula sabe como neutralizar as ambições de Maduro. Caso o Brasil fracasse, a América Latina poderá ver uma rápida escalada do conflito com a entrada dos EUA, ao lado da Guiana, e a Rússia com a Venezuela", alerta.
Márcio Coimbra, presidente do Instituto Monitor da Democracia e vice-presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig), reforça que a tensão testa a liderança política regional de Lula, que deveria se posicionar de modo mais contundente contra Maduro. "A CIJ já decidiu que o referendo do governo da Venezuela é ilegal. Portanto, não há o que se mediar nesse sentido. Há que se garantir a integridade territorial, a soberania e as fronteiras internacionalmente reconhecidas da Guiana. Mas parece que o Brasil, como sempre, quando se trata de Venezuela, está um o atrás. Lula tenta se colocar num papel de intermediador tentando dialogar com os dois lados. Mas isso deu errado na guerra entre Rússia e Ucrânia, quando o Brasil tentou colocar os dois países em grau de igualdade e também quando tentou se colocar como um interlocutor não condenando nem o lado do Hamas ou condenando o Hamas e condenando também a Israel". O Brasil está indo pelo mesmo caminho nessa relação da Guiana e da Venezuela, aponta.
Para ele, o Brasil não consegue se viabilizar como interlocutor, disse, citando que o Brasil deixou um "vácuo de poder" com o pedido de ajuda da Guiana aos Estados Unidos, que tem a petroleira Exxon Mobil na região. "Diante do vácuo de poder que o Brasil deixou nessa questão, a Guiana chamou os Estados Unidos para ajudar. E os EUA estão fazendo treinamentos aéreos, militares junto com a Guiana e mandando um sinal muito claro para Maduro. Parece que o governo brasileiro perde a oportunidade ao tentar se colocar como interlocutor sem reconhecer quem tem razão e se coloca numa situação que está diametralmente oposta ao direito internacional que é o que deveria guiar essas decisões. O Brasil, nesses últimos conflitos, tem se esquecido disso na tentativa de se tornar um interlocutor sem ter capacidade para tal. Em todos os casos, o Brasil saiu perdedor, não surgiu como um país reconhecido como capaz de negociar e saiu enfraquecido", acrescenta Coimbra.
Será um desafio manter a tradicional postura do país de se colocar como parte neutra, disposta a mediar conflitos, analisa Ricardo Mendes, da consultoria Prospectiva. "Maduro é um líder imprevisível, com popularidade baixa e disposto a tudo para se segurar ao poder. A Guiana é um país pequeno, sem recursos militares para se defender. A entrada de atores externos no conflito é inevitável. O Brasil, sempre meio em cima do muro, não ou confiança à Guiana de que estaria com eles. Também não houve uma condenação pública mais forte aos movimentos de Maduro."
Lembrando que Maduro visitará o homólogo russo, Vladimir Putin, até o fim do ano, Mendes aponta que o papel do Brasil fica insignificante e limitado a reforçar a segurança nas fronteiras em Roraima. Em sua visão, a China poderá ter um protagonismo maior do que a do próprio Brasil no cenário. "Um ator importante nessa disputa é a China. Guiana tem relações diplomáticas e econômicas fortes com a China, assim como a Venezuela. imagino que o grande mediador desse conflito será o Xi Jinping. Lula pode correr atrás, mas dificilmente vai conseguir ter um papel relevante neste processo."
Por fim, a professora de ciência política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mayra Goulart expõe que boa parte do capital político que o Brasil tem no mundo vem do soft power, do poder que vem não das armas.
"O Brasil tem que disponibilizar o corpo diplomático especializado que possui trajetória de respeito e credibilidade internacional. Esse é um ativo que o país pode utilizar e o papel de estadista e de líder regional que Lula cumpre que pode exercer alguma função de evitar a radicalização ou degeneração da situação ou deterioração da situação para um quadro bélico", acredita.
Além do risco militar, ela destaca que outro ponto negativo da crise é a reativação da polarização no país. "Afeta o debate interno porque a Venezuela é vista como um país problema, gatilho de polarização. A própria menção ao chavismo reativa a polarização política no Brasil. A principal aposta que o governo vinha fazendo era de desativar a polarização, fugindo desses gatilhos e apontando na percepção geral da economia na satisfação geral", conclui.
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