
Raul Jungmann - Ex-ministro da Reforma Agrária, da Defesa e da Segurança Pública e atual diretor presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram)
O Brasil enfrenta uma crise fiscal aguda, na qual medidas improvisadas, como o aumento do IOF (Imposto sobre Operação Financeira), são adotadas para tentar equilibrar as contas públicas. Criado com função regulatória, o IOF não pode funcionar como válvula de escape para fechar o caixa da União, especialmente porque essa ferramenta encarece o crédito, atrapalha as operações financeiras e de alocação eficiente de recursos e distorce os preços relativos da economia.
Em 2018, quando ministro da Segurança Pública, lideramos a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), com a promulgação da Lei nº 13.756. A lógica era simples: construir um mecanismo permanente, estável e não tributário de financiamento para programas estruturantes de segurança, inteligência e modernização das forças policiais. Inspiramo-nos nas boas práticas internacionais que desvinculam a proteção social de ciclos fiscais — e elegemos as loterias como uma fonte segura e escalável de recursos.
Naquele momento, as chamadas bets sequer existiam no Brasil. Mas a lei já antevia a possibilidade de que novas modalidades lotéricas poderiam ser vinculadas ao FNSP. Seis anos depois, a realidade superou todas as projeções: em depoimento à I das Bets, o atual presidente do Banco Central (BC), Gabriel Galípolo, afirmou que, em 2025, o setor movimentará entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões por mês, ou seja, até R$ 360 bilhões ao ano.
E o que o país arrecada disso? Muito pouco. A causa disso está na morosidade que não regulamentou o mercado. Lembro, ainda, a fala do presidente do BC: "Se existe jogo, deve haver regulação." Sua fala sintetiza o que já deveria ser óbvio. A omissão regulatória não só abre espaço para evasão fiscal e lavagem de dinheiro, como também representa a perda de uma janela histórica para financiar setores estratégicos sem aumento de carga tributária.
Supondo a arrecadação bruta anual em R$ 360 bilhões, conforme os dados do BC, já subtraídos os descontos de prêmios, Imposto de Renda (IR) e outras obrigações, o saldo disponível seria de R$ 69,75 bilhões. Conforme a legislação vigente, 88% desse saldo líquido deve ser destinado à cobertura de despesas de custeio e manutenção do agente operador (R$ 61,37 bilhões) e 12% deve ser redistribuído às áreas sociais (R$ 8,37 bilhões), com a seguinte decomposição aproximada: educação, 10% (R$ 837 milhões); segurança pública, 13,6% (R$ 1,139 bilhão); esporte, 36% (R$ 3,013 bilhões); turismo, 28% (R$ 2,344 bilhões); saúde, 1% (R$ 83,7 milhões); entidades da sociedade civil, 0,5% (R$ 41,8 milhões); Funapol, 0,5% (R$ 41,8 milhões) e ABDI, 0,4% (R$ 33,5 milhões).
Como proposta, se adotássemos um modelo semelhante ao das loterias tradicionais, destinando 40% da arrecadação bruta (R$ 144 bilhões) diretamente para áreas sociais — em vez de apenas redistribuir o saldo líquido após prêmios e IR —, o impacto social seria amplificado de forma expressiva. Nesse modelo, mantendo a proporcionalidade legal atual, os valores destinados às áreas sociais se multiplicariam, permitindo, por exemplo: FNSP sair de R$ 1,06 bilhão para R$ 8,7 bilhões; educação subir de R$ 837 milhões para R$ 6 bilhões; turismo saltar de R$ 2,34 bilhões para cerca de R$ 16 bilhões.
Lembrando que a regulamentação ainda está pendente, de modo que as bets ainda não geram distribuição às áreas sociais. Implementar essa proposta proporcionaria ao FNSP e a outras áreas sociais estratégicas um financiamento contínuo, robusto e independente de circunstâncias políticas imediatas, permitindo investimentos consistentes em inteligência, prevenção e modernização das forças policiais e demais serviços essenciais.
Outra possibilidade seria cambiar os recursos entre turismo e segurança pública, dada a urgência do tema no cenário nacional. Nesse caso, o FNSP ficaria com um adicional de orçamento de R$ 16 bilhões.
É preciso reconhecer que o atual modelo, ao privilegiar excessivamente o operador privado, representa uma oportunidade perdida de articulação entre desenvolvimento econômico e fortalecimento das políticas públicas. O Brasil não pode continuar a tratar as apostas esportivas como uma simples atividade econômica; trata-se de um fenômeno social, com potenciais riscos e benefícios que exigem uma regulação proativa, ética e eficiente.
Aproveitar estrategicamente as bets, alinhando-as às práticas consagradas das loterias tradicionais, pode transformar um mercado bilionário em uma fonte sustentável e ética de financiamento público, demonstrando visão inovadora e compromisso com o bem-estar social brasileiro.