
Marcelo Senise — presidente do Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial (Iria), sócio fundador da Social Play e CEO da CONECT I.A.
Um capítulo histórico foi escrito no Congresso Nacional, nesta terça-feira, 20 de maio de 2025. A Câmara dos Deputados instalou oficialmente a comissão especial destinada a analisar o Projeto de Lei 2.338/2023, que trata da regulamentação da inteligência artificial (IA) no Brasil. Após quase dois anos de articulações, debates, resistência e superação de obstáculos institucionais e culturais, essa conquista representa não apenas um avanço legislativo, mas um alerta urgente. Um chamado à responsabilidade coletiva. Um marco que, se tratado com a seriedade necessária, pode proteger os pilares já fragilizados da nossa democracia.
Como presidente do Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial (Iria), acompanhei essa jornada desde o início. Foram incontáveis reuniões técnicas, encontros com lideranças políticas, conversas com a imprensa, diálogos com a sociedade civil e tentativas de sensibilizar o setor privado. Trabalhamos para que o tema saísse das rodas acadêmicas e chegasse às mesas de decisão. A instalação da comissão, presidida pela deputada Luísa Canziani e relatada pelo deputado Aguinaldo Ribeiro, é resultado direto dessa mobilização persistente. Mas é apenas o começo de uma corrida contra o tempo.
Desde já, é preciso afirmar com clareza: o texto que hoje está sob análise na Câmara, embora originado por juristas respeitados no Senado, é limitado em sua essência. Ele adota uma perspectiva voltada majoritariamente à proteção do consumidor e à promoção da inovação econômica. Trata-se de uma visão importante, mas insuficiente. A inteligência artificial ultraa o domínio do mercado. Ela já impacta a política, a justiça, a cultura, o ensino, a saúde mental, a liberdade de expressão e a própria coesão social. Regular essa tecnologia apenas com base na ótica do desenvolvimento econômico é, no mínimo, um erro estratégico.
A ameaça que paira sobre nós não se limita ao uso de algoritmos para recomendar produtos em lojas virtuais. Estamos falando da manipulação sutil e, muitas vezes, imperceptível, da vontade popular. Estamos falando de deepfakes capazes de falsificar discursos presidenciais em segundos, da utilização da IA generativa para disseminar teorias conspiratórias com aparência de verdade, da criação de bolhas informacionais que isolam o cidadão em realidades paralelas e alimentam o radicalismo.
O que está em risco, portanto, é a integridade da informação, a confiabilidade do debate público e, por consequência, a governabilidade democrática. O uso indiscriminado e irresponsável da inteligência artificial ameaça sabotar eleições, desestabilizar instituições e corroer a própria noção de verdade. E, numa sociedade onde é difícil distinguir o fato da ficção, essa corrosão pode ser fatal.
É por isso que defendemos uma regulamentação centrada não apenas na inovação, mas na proteção da cidadania. Que reconheça a IA como tecnologia de uso crítico e estratégico. Que estabeleça princípios de transparência algorítmica, direitos de revisão de decisões automatizadas, obrigações de auditabilidade e mecanismos reais de responsabilização. Que assegure que a IA sirva à democracia, e não o contrário.
Mas isso só será possível com participação. Com escuta ativa. Com um debate público plural, aberto, transparente. Com o envolvimento efetivo de representantes da sociedade civil, movimentos sociais, universidades, jornalistas, desenvolvedores, magistrados, reguladores e, acima de tudo, do cidadão comum. A inteligência artificial já faz parte do nosso cotidiano, mas sua compreensão, seus riscos e seu potencial ainda são desconhecidos por boa parte da população. A educação digital e a inclusão no debate não são luxos: são pré-requisitos para uma regulação legítima.
O Iria está comprometido com essa causa. E continuará pressionando, colaborando e alertando. Em 9 de julho de 2025, no auditório Nereu Ramos da Câmara dos Deputados, realizaremos o Simpósio Internacional Inteligência Artificial e Democracia, com a presença de especialistas do Brasil e do exterior, para discutir caminhos reais de proteção institucional frente à ascensão das tecnologias autônomas. O evento será gratuito, aberto ao público e transmitido ao vivo. É uma oportunidade rara de discutir o futuro — enquanto ele ainda pode ser moldado.
O Brasil chegou, finalmente, ao ponto de partida da conversa certa. Mas o tempo urge. Ou encaramos esse desafio com a seriedade que ele exige, abandonando interesses imediatistas, vaidades políticas e dogmas ideológicos ou assistiremos, inertes, à erosão silenciosa da democracia, programada linha por linha, byte por byte, por sistemas que sequer compreendemos completamente.
Ainda há tempo. Mas ele está acabando. E a história não costuma ser generosa com os que hesitam quando mais importa agir.