
A vida nunca é breve para quem a vive intensamente. Enquanto alguns teimam em querer esticar o tempo, outros aprofundam a existência. O que lhe parece melhor? Remar quilômetros na superfície ou mergulhar até descobrir um outro universo, outras formas de vida, outros sons e formas? Diria que meu exercício no remo me permite as duas coisas. Na canoa, posso vencer distâncias e, ainda assim, alcançar um tipo de profundidade que me reapresenta à vida. Muito provavelmente, os mergulhadores vão dizer que submergir também os faz alcançar um estado meditativo que equivale a uma maratona em terra firme.
Uso essas metáforas apenas para externar meu modo "reflexiva", pois é assim que ando ultimamente. A morte do ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica, aos 89 anos, convidou-me de novo a investigar o sentido da vida. Não que essa dimensão filosófica e existencial ocupe meus pensamentos o tempo todo, mas a agem de pessoas com tanta bagagem deixa um certo vazio. Quem vai ar na nossa cara, com tanta propriedade, que a vida simples pode ser prazerosa e, sobretudo, completa? Quem vai dizer que a grana não importa e ainda estraga o que há de bom por aqui? Foram tantos os ensinamentos e todos eles vêm à tona com sua morte física.
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Mujica viveu de forma simples, o que não quer dizer que teve uma vida banal. Ao contrário. Ele usufruiu da dor, da injustiça, do poder. Saiu de uma solitária cela para a presidência de um país. Viveu na guerra e em profunda paz. Que existência riquíssima! Um dos políticos latino-americanos mais influentes das últimas décadas acabou reconhecido por um símbolo material, seu fusca azul, e por um discurso que exaltava a simplicidade de ser e de viver.
Nos anos de solidão, ele disse, "aprendi a galopar para dentro". Uma estratégia para não enlouquecer. Também desenvolveu a mania de falar com ele mesmo. E entendeu que só dá para ser feliz com muito quem aprende a ser feliz com pouco. É, meus amigos, a vida pode ser curta, como todos sabemos, mas pode ter enorme significado, pode deixar legado e herança não material. Mujica nos concedeu a honra de viver no nosso tempo. Lembrou-nos de olhar para a criança que fomos e não decepcioná-la. Que lembrança importante esta!
Frequentemente, tenho lampejos que me fazem "galopar pra dentro". No encontro com o outro é que nós nos encontramos. Na semana que ou, tive duas epifanias. Aqueles momentos de insights poderosos, para acordar, tirar do lugar. Um deles foi ao assistir à peça A menina escorrendo dos olhos da mãe, com Guida Vianna e Silvia Buarque, uma história extraordinária sobre a relação mãe e filha: texto incrível de Daniela Pereira de Carvalho e direção de Leonardo Netto, interpretação magistral das atrizes.
Também acompanhei a palestra do repórter Valmir Salaro, uma aula sobre o futuro do jornalismo, mas também sobre a importância de fazermos nosso mea culpa diante dos erros. Ele é autor de um documentário sobre o case da Escola Base, um episódio que entrou para a história como uma das injustiças mais flagrantes da polícia e da imprensa na cobertura de um caso. Em relato verdadeiro, sem filtros, sem subterfúgios, Salaro reconhece seus erros, expõe fragilidades e nos mostra o quanto enfrentar o ado é essencial. Momentos assim são bálsamos no dia a dia, pois são oportunidades únicas de aprender com o outro.
Poderia estar falando sobre muitos assuntos áridos neste domingo e engordar um repertório enfadonho de análises a respeito de notícias até importantes no dia a dia. Mas sempre prefiro uma palavra que leve a outro lugar, aquele ponto cravado em um mapa que não é físico. O lugar onde a gente chega "quando aprende a galopar para dentro".