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A Igreja, o papa e o Brasil

Quanto mais respeitada a autoridade espiritual do papa, maior a possibilidade de influir em temas de interesse internacional

Opinião 3004  -  (crédito: Caio Gomez)
Opinião 3004 - (crédito: Caio Gomez)

SÉRGIO E. MOREIRA LIMA, embaixador de carreira, advogado e presidene do Conselho da Sociedade Brasileira de Direito Internacional

O cristianismo é o maior sistema religioso e nele se destaca o catolicismo apostólico romano. O Brasil, com 120 milhões de fiéis, contingente inigualável de católicos no mundo, tem contribuído para a proeminência da Igreja. A sucessão do seu líder provoca questões sobre o papel do clero num mundo em transformação, no qual o agravamento de conflitos expõe a geopolítica a extremos de incerteza e riscos para a humanidade. É diante de tais desafios que se devem discernir as lideranças mais capazes de situar princípios e valores morais no centro das aspirações coletivas. O papa Francisco foi uma inspiração na defesa da diplomacia e do direito contra a prevalência da lógica do poder e da força.

Na guerra da Ucrânia, no conflito em Gaza, entre outros, o sumo pontífice empenhou-se na busca do entendimento entre as partes e na proteção dos civis. Sua voz ecoou pelo mundo e trouxe esperança em meio à agonia. É incontestável o prestígio do papa na política internacional. O Vaticano, cidade-Estado com representações no exterior, possui tradição diplomática secular. A igreja contribui para responder a desafios globais. Na Laudato Si, primeira encíclica papal sobre meio ambiente, o pontífice afirma não haver duas crises, uma ambiental, outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. A preocupação com a degradação florestal, em meio à pobreza, levou-o a nomear o primeiro cardeal da Amazônia.

O trabalho diplomático concorre para o prestígio da igreja e sua capacidade de evangelizar. As funções eclesiásticas e temporais interagem. Quanto mais respeitada a autoridade espiritual do papa, maior a possibilidade de influir em temas de interesse internacional. O papado marcou a política contemporânea com o polonês Karol Wojtyla, João Paulo II (1978-2005), o Papa da Liberdade, um dos grandes líderes do século 20 por sua resistência ao autoritarismo soviético. Como cardeal e pontífice, influiu na consolidação do Solidariedade, na Polônia, como parte do processo histórico que levou à abertura das fronteiras na Hungria, à queda do muro de Berlim e ao colapso da União Soviética, maior transformação geopolítica e econômica do século 20. No Vaticano, ao assistir à posse de Wojtyla, não podia imaginar a dimensão do poder brando do papa na mudança da ordem internacional que estava por vir.

Se o histórico de João Paulo II traduz a luta pela liberdade diante do autoritarismo, e o de seu sucessor, o alemão Bento XVI (2005-2013), o esforço teológico de colocar o cristianismo de volta às suas origens, o legado de Francisco identifica-se com a reforma, com o resgate da moralidade na defesa do que é simples, bom e justo, como a proteção dos oprimidos, o reconhecimento da universalidade dos direitos humanos, o desenvolvimento sustentável, o respeito aos povos originários e ao seu habitat, expressão da dignidade humana. Compõem esse patrimônio imaterial a misericórdia, mas também o sentido de justiça. Ele recebeu a igreja envolvida numa crise moral em razão de crimes hediondos de membros do clero, que abalaram a confiança no Vaticano e aumentaram a percepção de falta de transparência na condução dos seus negócios.

O cardeal argentino Jorge Bergoglio tinha, além da ascendência italiana, as qualidades para a missão que amedrontou seu antecessor e desafia seus sucessores: avançar na reforma da igreja. Mas foi a proximidade do colega brasileiro Cláudio Hummes e seu conselho de "não esquecer os pobres", que o ajudou a marcar a identidade do seu papado, como ele próprio reconheceu. Ao seguir o exemplo de São Francisco de Assis, o papa Francisco orientou sua ação eclesiástica em favor dos desvalidos e da redução da desigualdade .

Sua humildade inspira e conforta, assim como o carisma e o humor. Ao visitar o Brasil, indagado sobre sua eleição no contexto da antiga rivalidade com a Argentina, considerou essa atitude superada e arrematou com a frase inesquecível: "Nós negociamos bem: o papa é argentino, e Deus é brasileiro". É preciso preservar o legado do pontífice, com a escolha de líderes identificados com a causa da humanidade e do planeta. Num momento tão crítico para salvaguardar o futuro de ambos, espera-se que o papa a ser escolhido tenha a coragem e a visão de João Paulo II, a capacidade teológica de Bento XVI e a dimensão moral e ética de Francisco.

 

postado em 30/04/2025 06:00
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