
Andrea Hanai, gerente de projetos no Instituto para o Desenvolvimentodo Investimento Social (IDIS) e especialista em fundos patrimoniais
O recente embate entre a Universidade de Harvard e o governo dos Estados Unidos, que culminou no congelamento de US$ 2,2 bilhões em financiamento federal anunciado por Donald Trump, lançou luz sobre a importância estratégica dos fundos patrimoniais, os chamados endowments. Diante de pressões políticas, Harvard pôde manter sua autonomia e posição de destaque global graças ao maior fundo patrimonial universitário do mundo, com um patrimônio de US$ 53 bilhões (R$ 288 bilhões). O episódio expõe, de maneira eloquente, como os endowments são instrumentos poderosos de proteção institucional e autonomia universitária —um aprendizado especialmente valioso para países como o Brasil.
No contexto brasileiro, os fundos patrimoniais ainda engatinham, mas mostram sinais de avanço. Desde a promulgação da Lei nº 13.800/2019, que regulamenta a constituição e gestão de fundos patrimoniais filantrópicos, o número de iniciativas ligadas a universidades saltou de oito para 39. Segundo o Monitor de Fundos Patrimoniais, lançada pelo Instituto para o Desenvolvimentodo Investimento Social (IDIS), o país soma hoje 122 endowments ativos, com um patrimônio total de R$ 157,3 bilhões. Deste montante, R$ 156,5 milhões estão vinculados a instituições de ensino superior — uma fatia ainda pequena, que representa cerca de 1% do total.
Embora modestos em comparação aos padrões internacionais, esses números indicam uma transformação em curso. Universidades públicas como USP, Unicamp, ITA e Unesp já estruturaram seus próprios fundos,voltados ao apoio de programas de pesquisa, ciência e tecnologia,extensão universitária e políticas de permanência estudantil. Esses recursos, istrados com governança e transparência, são uma resposta concreta aos frequentes cortes orçamentários que afetam o ensino superior brasileiro.
A realidade americana ilustra o potencial transformador dos endowments. De acordo com o mais recente relatório do Conselho para o Avanço e Apoio ao Ensino Superior (CASE), instituições de ensino superior nos EUA arrecadaram US$ 61,5 bilhões em contribuições voluntárias em 2024, um aumento de 3% em relação ao ano anterior, ajustado pela inflação. Quase metade das doações foi destinada a bolsas de estudo e assistência financeira a estudantes — refletindo o papel central que os fundos patrimoniais desempenham na democratização do o à educação.
Por aqui, a construção dessa cultura é o grande desafio. Ainda há desconhecimento sobre os mecanismos de funcionamento dos fundos patrimoniais, resistência à doação por parte do setor privado e poucos incentivos fiscais. Avançar exige vontade política,articulação entre governo, iniciativa privada e sociedade civil, e,sobretudo, o fortalecimento da cultura de doação.
A boa notícia é que os primeiros resultados começam a aparecer. Segundo o IDIS, o número de fundos patrimoniais mais do que dobrou desde 2021 e 72% dos ativos totais estão alocados em instrumentos financeiros de baixo risco, o que demonstra prudência e amadurecimento na gestão. Em 2023, os 74 fundos patrimoniais participantes do Anuário de Desempenho de Fundos Patrimoniais,relataram a destinação de R$ 3,2 bilhões para organizações socias e causas de interesse público.
A experiência de Harvard demonstra que autonomia acadêmica e liberdade institucional custam caro — e devem ser protegidas. Fundos patrimoniais são mais do que instrumentos financeiros: são garantias de resiliência para organizações que trabalham por causas públicas, como o ensino, a ciência e a inclusão. Se o Brasil quiser ter universidades mais fortes, menos vulneráveis a ciclos políticos e mais alinhadas ao futuro, precisa colocar os endowments no centro de sua estratégia de financiamento do ensino superior. A oportunidade está posta. Cabe agora consolidar o terreno fértil que começa a despontar.