
Quando descreve o próprio trabalho, a artista portuguesa Joana Vasconcelos pesca tantas referências que é capaz de ar pela China, pela África, pelo Brasil e retornar a Portugal, de onde sempre parte. A cultura portuguesa é um caldeirão de misturas resultante de séculos de explorações marítimas mundo afora e é exatamente aí que Joana bebe. Assim, a escultura monumental Pavillon de vin, em cartaz na Embaixada de Portugal, e a exposição Fascinação, na galeria do Camões — Centro Cultural Português, resultam de uma mistura que é marca do trabalho da artista, uma das mais celebradas da cena contemporânea portuguesa.
Criado com ferro forjado em desenho que lembra as filigranas, o Pavillon de vin é um imenso garrafão dentro do qual foram plantadas mudas de vinhas. A obra faz parte de uma série que tem ainda um bule e outras peças. Joana foi buscar na tradição do vinho parte da inspiração, mas também no artesanato, em materiais e em técnicas vindas do além mar. "Eu trabalho sobre os ícones e a tradição portugueses, aquilo que caracteriza Portugal, e o que Portugal trouxe do mundo para sua cultura. O que me interessa é como a expansão do país aconteceu no sentido de que fomos encontrando outras culturas e trazendo informações dessas outras culturas", avisa a artista. "Isso influenciou o que nos rodeia e nossas tradições. Nossos hábitos são influenciados por esses encontros com tantas outras culturas, a árabe, a africana, a brasileira, a chinesa, a japonesa, os indianos."
O ferro forjado que dá forma à escultura é o mesmo material tradicional português usado nos portões e grades para proteger as casas. O desenho nasceu sob influência do contato com a Índia e com a China, de onde os portugueses trouxeram a tradição do chá e da filigrana. "O ferro forjado é um elemento decorativo, não é estruturante. Neste caso, uso como estruturador de um volume do garrafão. O ferro forjado também representa uma profissão que está em desaparecimento, que é a dos empalhadores de garrafão", explica Joana. A tradição de envolver os garrafões de vinho em palha tem sido substituída pelo uso do plástico. "Essa segunda pele dada aos garrafões de vidro, no fundo, está representada pelo ferro forjado e, depois, pela vinha que está plantada e vai cobrir o garrafão. É uma obra específica e fala sobre a influência da cultura portuguesa pelo mundo. É uma peça que fala desse jogo entre cultura portuguesa e o que trouxemos de outras culturas e que influenciam a nossa produção local, nossas tradições", garante a artista.
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Em 2012, Joana foi a artista mais jovem e a primeira mulher a expor na Galeria dos Espelhos do Palácio de Versalhes, que todos os anos convida um artista de prestígio internacional para ocupar a sala histórica. No ano seguinte, esteve na Bienal de Veneza. Em Brasília, além da escultura monumental, a artista mostra a coleção Os cadernos da minha vida, um conjunto de 15 livros de artista reproduzidos artesanalmente pela editora luso-brasileira Urucum conforme os cadernos de rascunhos e estudos preenchidos pela artista ao longo dos anos. "É uma biografia, no fundo, um Instagram do ado. Todos os dias eu escrevo e desenho no caderno. Meus cadernos acompanham minhas obras. São desenhos, pensamentos, coisas que penso, que ouço, para não me esquecer. Minha vida está naqueles cadernos", avisa.
Impressos em fine art, em tiragens de nove exemplares, os cadernos têm dimensões de 34X44 cm e são acondicionados em caixas acompanhadas de um jogo de azulejos que reproduzem uma página da obra. São itens destinados a colecionadores, mas também uma espécie de histórico que traz o registro de toda a trajetória da artista e o caminho percorrido para chegar às obras sempre monumentais. O tamanho, aliás, é algo importante para a artista. Ela não sabe ao certo quantos desses exemplares produz por ano e avisa que não há uma lógica nas páginas, e sim uma continuidade.
E tudo acontece ao mesmo tempo: à medida que pensa nas obras, Joana também faz os desenhos e executa a peça. "Não é um pensamento linear. Estamos muito habituados a pensar no artista com uma técnica, um tipo de material e um tipo de obra. Isso é o pensamento masculino. No pensamento feminino, é o contrário: trabalho um monte de materiais ao mesmo tempo, não há linearidade de pensamento nem de técnica. Posso trabalhar o ferro forjado e fazer uma peça de crochê ao lado", diz, ao lembrar que trabalha com uma variedade de materiais que ultraa escolhas únicas. "Ela é extremamente meticulosa na escolha dos materiais", avisa Lucia Bertazzo, editora da Urucum e uma das criadoras das séries de cadernos de artistas. Nas páginas reproduzidas em formato de obra de arte estão as sementes das obras da artista e os labirintos mentais percorridos até a concretização das peças, mas também detalhes do cotidiano que aparecem ao lado das soluções estéticas, um lembrete que a arte não está separada da vida e pode até imitá-la.
Fascinação
Exposição de Joana Vasconcelos. Visitação até 15 de abril, às quintas e sextas-feiras, das 11h às 16h, e no primeiro sábado de cada mês, das 11h às 16h, na Embaixada de Portugal no Brasil — Avenida das Nações, lote 02.